sábado, 29 de janeiro de 2011

Sinal dos tempos

Aos cinco anos, Márcio já envergava a bela camisa colorada do Valeriodoce Esporte Clube. Em sua família, aquela era uma tradição cinquentenária. O avô, o pai e os tios do garoto, além de dividir o mesmo sentimento pelo clube, foram jogadores e conselheiros do VEC. Fazia sol, chuva ou ventos de minério – por sinal, isso ocorre com certa frequência -, eles estavam religiosamente presentes ao acanhado, mas simpático estádio Israel Pinheiro.

Viram vitórias heroicas sobre tradicionais clubes do futebol brasileiro como Botafogo, Cruzeiro e Atlético. Porém, também foram testemunhas oculares de humilhações históricas. Por exemplo, o rebaixamento para a terceira divisão do futebol mineiro. Isso só para citar uma, e olha que a lista é longa. Os vexames, no entanto, não alteraram a paixão da família Lage pelo VEC.

Márcio, ao oposto do clube, cresceu. Foi estudar medicina na capital mineira. Acompanhava de longe a participação do clube itabirano no Campeonato Mineiro. A ausência em alguns cortejos se tornou inevitável. Mas o afastamento, não. Levava o time no coração, confessava aos amigos. Formou e logo voltou à terra natal. Lá se casou e teve um único herdeiro, Matheus.

Matheus adorava futebol, para alívio do pai que acreditava no prosseguimento da tradição familiar. O moleque foi a dezenas de jogos do Dragão. Sinceramente, ele não achava graça nenhuma naquele campo esburacado e nem nos 22 pernas de pau que corriam desordenadamente atrás da pelota. Seu interesse pelo esporte bretão era outro. Para Matheus, nada melhor do que ligar a TV e acompanhar o espetáculo de Messi, Xavi, Iniesta e do restante da companhia azul-grená. Que Valeriodoce que nada. Tratava-se de um autêntico culé. E nem a tradição, a possibilidade de ver os jogos in loco, nem o amor pelo pai e pelo avô, nada impedi-lo-ia de torcer pelo clube catalão.

“Tudo bem, o colorado itabirano fica sendo seu segundo time”, propôs o pai.

Seguro, Matheus respondeu: “Pai, time a gente só tem um”.

É meu caro, esse é o futebol moderno. Adaptas ou perecerás!

domingo, 23 de janeiro de 2011

Mais um deles

Seu nome era Antônio Aparecido - e sempre fez jus ao sobrenome. Quando garoto, era a atração naqueles felizes encontros de família. Na jovialidade, foi fundador e presidente da União pelo Esporte (UPE), uma associação de âmbito nacional que buscava maior investimento público para o esporte de baixo rendimento. Acreditava que poderia mudar o mundo pelo esporte. Tratava-se de um idealista.

Com sua atuação na UPE, ganhou destaque nacional, alcançando, anos depois, uma vaga na Câmara dos Deputados. Ficou pouco tempo. Voltou a dedicar seus dias a verdadeira paixão: o esporte. Com muito empenho, trabalho sério e uma dose de sorte, galgou até o cargo de presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF).

Tinha interessantes planos na cabeça. Pensou em modernizar o calendário, adaptando-o ao europeu. Pensou em valorizar às series B, C e D, investindo mais dinheiro da própria instituição. Pensou que poderia transformar o futebol brasileiro em um produto mais atrativo... Mas só pensou. Esperto, percebeu que sua ousadia não era condizente com a posição cômoda dos velhos senhores feudais que estavam à frente das federações estaduais e de cargos importantes dentro da CBF.

Conhecia o mundo, sabia o quanto era perigoso cutucar uma alcateia de lobos com um cabo de vassoura. Por isso, não tomou nenhuma medida estarrecedora em seus primeiros meses de mandato. Para agir, procurou conhecê-los melhor. Almoçou, jantou, passou o final de semana e até o Natal com os “homens do esporte”. Descobriu, além de todas as falcatruas, que aqueles velhos inescrupulosos também eram boas pessoas: atenciosos, amorosos, preocupados com os filhos e netos, extremamente religiosos e caridosos. Sua mulher virou a melhor amiga das mulheres deles. Sua filha começou a namorar o filho de um deles. Ela, repentinamente, engravidou e casou. Tudo pareceu passar tão rápido quanto um piscar de olhos.

Aparecido já estava mais ligado a eles do que gostaria. Acabou se perdendo nesse novo mundo. As antigas amizades do tempo da UPE foram esquecidas, assim como os interessantes planos para o futebol brasileiro. As medidas estarrecedoras não vieram no primeiro mandato nem nos sete posteriores à frente da CBF. Pior do que ser amigo deles, Aparecido tornou-se mais um deles.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Mundo dos sonhos

Em questão de segundos, ele antevia toda a jogada. Sabia exatamente o destino da pelota. Havia um magnetismo impressionante entre os dois. Ele conduzia aquele objeto esférico assim como um lorde caminhava com sua dama: pura elegância! Nem o beque mais veloz, forte e astuto conseguia separá-los. Assim ficava fácil. E pra ele realmente era. Foi artilheiro, melhor jogador e campeão de tudo o que disputou.

Era craque, rico e, como se não bastasse, bem afeiçoado - quero deixar claro que não se trata de Gerge Best, ele era melhor e mais bonito. Fez tantos gols quanto teve tantas mulheres. Casou cinco vezes. Oficialmente, teve sete filhos - os não registrados somam algo em torno de dez, acreditavam os mais otimistas. Gostava tanto de farras que virou sócio das melhores casas noturnas de Londres. Pra completar, fumava e bebia muito.

Tratava-se de outra época. O futebol não era tão físico e tático como ele é hoje. O talento sobressaia por si só. Por isso, fizera tanto sucesso quanto os Beatles; era mais querido que a rainha; e tinha o prestígio do Papa. Os fanáticos sustentavam, inclusive, que ele era maior que seu próprio clube, o Crystal Palace.

Mas a validade no futebol, assim como a verdade, é perecível. Ainda mais acompanhada de uma dose dupla de Martini, na companhia de duas vagabundas. Com apenas 27 anos, pendurou as chuteiras. Se jogasse mais alguns meses, seria o futebol que o abandonaria. No entanto, o boleiro ainda saiu por cima: foi aclamado de pé, por 90 mil torcedores, em pleno Wembley.

“Um grande craque dura o tempo do surgimento de outro. Mas sempre serei adorado”, dizia ele, com extrema segurança, acreditando ser à exceção da sua própria regra. O tempo mostrou que ele estava errado. O futebol, as mulheres, as festas... todos seguiram sem ele. Paulatinamente, o ex-craque percebeu que era apenas uma foto na parede e uma página virada de uma bela história. Hoje, ele é um velho caquético, que viveu em um mundo dos sonhos com que sonhas todas as noites.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Destino

Em sua cidade natal, Paudalho (PE), ele era rei. Melhor, tratava-se do príncipe de Capibaribe (nome do rio que corta a cidade). O apelido foi dado por um antigo locutor esportivo ao ver o garoto atuar no campeonato sub-15. Seu José era a maior autoridade futebolística da região. O velho dizia aos quatro cantos que havia visto o Brasil levantar o caneco mundial na primeira oportunidade, em 1958. Daí veio a ligação para o apelido do garoto. Didi, um dos meio campistas mais talentosos do futebol brasileiro, recebeu do jornalista Nelson Rodrigues a alcunha de Príncipe Etíope. Atento, José constatou que a elegância com que o moleque jogava lembrava a classe do atleta da seleção brasileira, por isso a homenagem.

O garoto era o quinto de uma família de sete filhos. Seu pai era pedreiro e a mãe, dona de casa. Muito pobre, o moleque não vislumbrava ter os carrões e a vida de popstar dos boleiros de hoje em dia. Consciente, ele apenas queria livrar-se da pobreza em que encontrava. O cardápio do café-da-manhã, almoço e jantar, por exemplo, era sempre o mesmo: feijão com farinha, isso quando ainda havia o que comer.

Não demorou e ele ganhou uma oportunidade em uma grande equipe do futebol nacional, o Vasco do Gama - por sinal, seu clube de coração. Logo no primeiro treino com os juniores, fez um gol e deu duas assistências para a vitória dos reservas sobre os titulares, 4 a 2. Já com o pernambucano entre os 11, aquele time amador do Vasco ganhou tudo o que disputou, do Campeonato Carioca à Taça São Paulo. E o Príncipe do Capibaribe, claro, foi o destaque em todos os torneios.

Os deuses do futebol, no entanto, não reservaram um futuro próspero dentro das quatro linhas ao garoto. No ano seguinte, ao fazer alguns exames médicos de praxe, os cardiologistas descobriram que ele tinha um problema no coração. Um mês depois, a diretoria avisou que os seus serviços não interessavam mais a equipe. Procurou, em vão, outros clubes. Chorou bastante durante seus últimos dias no Rio. Pegou o primeiro ônibus para Pernambuco e esqueceu o futebol.