quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Sonhos Perdidos

Ademar era um dos rapazes mais responsáveis e trabalhadores de todo o Rio de Janeiro, diziam os amigos. Queria ter vida boa e dar merecido descanso à mãe, que o criara mais outros quatro irmãos. Da infância, além da vida dura, guardava um desgosto profundo: viu o pai fugir de casa, acompanhado de uma rapariga, levando todas as economias da mãe, deixando-os à mingua. A despeito de ser o filho mais velho, na época, Ademar tinha apenas sete anos.

Seu Antônio, pai de Ademar, era alcóolatra e fumante inveterado. Às vezes, fazia uns bicos como pedreiro, mas não gostava de trabalhar. O que desempenhava com gosto era a busca constante por novas namorada. Traia a mulher sistematicamente. Como se não bastasse, quando chegava alcoolizado em casa, agredia a esposa e os filhos. Não era bem quisto pela vizinhança.

É certo que o ‘sumiço’ de seu Antônio serviu para unir ainda mais a família. Se nos primeiros meses dona Matilde ainda lamentava a perda do companheiro, com o passar dos anos ela compreendeu que a felicidade plena estava longe daquele carrasco transvestido de marido.

Com muitas dívidas e cinco filhos pequenos, Matilde começou a trabalhar em dois horários como diarista e deixava Ademar responsável pelos outros irmãos. Esperto, Ademar ainda tirava tempo para estudar. Sonhava em ser professor de educação física, uma vez que os planos de ser um grande artilheiro estavam fora de cogitação por ter dificuldade de locomoção com uma das pernas, fruto de um acidente causado pelas bebedeiras homéricas do pai.

Já crescido, aos 21 anos, começou a trabalhar como motoboy. Fazia entrega de pizzas na região da Barra da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro. O dinheiro era suficiente para ajudar em casa, mas impossível para concretizar o desejo do diploma universitário. Sua família ainda levava uma vida muito custosa.

Ademar era conhecido no bairro, também, por ter um largo conhecimento sobre esquemas táticos. Acompanhava os jogos que passavam na TV e não perdia um cortejo do Bangu, seu clube de coração. O alvirrubro passava por uma das piores crises da história, estava disputando a terceira divisão do Campeonato Estadual. Falida e sem patrocínio, a tradicional agremiação carioca ficou um ano sem atividades. Uma chapa formada por alguns conhecidos de Ademar conseguiu assumir o comando do clube. A ideia era reestruturar o Bangu com muita criatividade e pouco dinheiro. Em função disso, surpreendentemente, Ademar foi convidado a assumir o comando técnico do time.

O convite, que inicialmente gerou certa incredulidade, foi aceito. Nova rotina: treinos no período matutino e jogos aos domingos, além, claro, das pizzas à noite. Ademar formou sua comissão técnica e encontrou alguns jovens promissores nos campos de várzeas daquelas bandas. Montou um time equilibrado, sem muito brilho. Seu grande mérito foi definir um esquema que encaixasse com o grupo de jogadores que tinha a disposição. O moderno e usual 4-2-3-1 caiu como uma luva. Sem dificuldades, logrou a taça da Série C do Rio de Janeiro.

Ademar tinha os pés no chão. Continuou levando a mesma vida de sempre. Sistemático, seis meses antes da disputa da segunda divisão já estava com o elenco fechado. Não instituiu nenhum método que revolucionasse o futebol, mas desempenhava com muita altivez o papel de líder. Era respeitado e, sobretudo, admirado pelos comandados.

Mesmo sendo mais competitiva, a Segundona foi presa fácil para o Bangu, que ergueu a taça de forma invicta. O ponto alto da equipe era o inexpugnável setor defensivo. Não foi vazado durante os doze jogos. Ademar ganhou o apelido de português, em referência a José Mourinho, técnico do Real Madrid. No dia da decisão, contra o Volta Redonda, acertou um bom contrato com o Goiás por um ano. Assim, poderia dar à mãe uma vida digna e tranquila – o mais importante para ele naquele momento.

Ao chegar em casa, para comemorar com a mãe, que não gostava de ir aos estádios por causa da violência, encontrou Matilde no chão, com o rosto desfigurado. Descobriu, por meio dos vizinhos, que o pai havia voltado, roubado um dinheiro e a agredido. Foi ao boteco mais próximo de casa, onde o pai costumava frequentar. Consternado, agrediu o bêbado com pauladas violentas. Ademar foi preso e condenado a longos invernos na cadeia. Perdeu o pai, perdeu a mãe e perdeu os sonhos.